quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O que torna o grupo um Grupo, sem matar a expressão individual (por Camila Bauer)


Quando fui ao último espetáculo do Théâtre du Soleil, em Porto Alegre, comecei a pensar sobre o que representa para mim a noção de grupo. Ao entrar na Cartoucherie improvisada em Canoas, vi toda aquela estrutura montada e pensei “Uau, que grupo! Deve ser incrível trabalhar em algo assim.” A Adriane Mottola, nesse momento, entre atores que se maquiavam diante de nossos olhos curiosos e saudações à classe – que por certo compareceu em peso à pré-estréia – me olhou com cara de pouca convicção, sugerindo ter dúvidas de que lhe parecesse realmente incrível pertencer àquela trupe. Desconfiei.
Conversando sobre isso, nos demos conta de que, no fundo, partilhamos uma mesma ideologia. Para Adriane, é muito importante que todos os membros do grupo possam se expressar com igual peso e liberdade, sejam novos integrantes ou veteranos da companhia. Para a Stravaganza (e isso fica claro logo nos primeiros encontros com eles) é fundamental que todos participem de tudo, que todos cooperem, tenham ideias e liberdade para executá-las, o que é certamente difícil em um grupo muito grande, como a trupe liderada por Mnouchkine.
Sim, a Adriane tem razão.
Assim, e por isso, entre inúmeros motivos, me parece louvável poder trabalhar com um grupo como a Stravaganza, que está sempre indo alem, se superando, buscando e aprendendo. Um grupo no qual temos a liberdade de opinar em tudo sem nem mesmo sermos da companhia! Eu não SOU da Stravaganza, eu ESTOU na Stravaganza. E isso pra mim basta; acho que pra eles também. Acho difícil realmente Ser alguma coisa hoje em dia (e desde sempre, na verdade); de fato, acho quase desnecessário. Me sinto muito feliz por ESTAR ali, com eles, discutindo e aprendendo todos os dias, descobrindo coisas novas e provocando inquietações.
 ESTAMOS JUNTOS.
Afinal, o que somos para alem do que estamos?

Ao mesmo tempo em que me pergunto o torna um grupo Grupo, depois de muitas discussões sobre Vertigem, Cia dos Atores, Galpão e o futuro/presente do teatro, me pergunto também o que torna a arte de cada artista/grupo singular. Serão suas inquietudes (existenciais) sempre singulares? E o que faz com que essa singularidade nos toque? Serão nossas inquietudes humanas (universais)? Será singular igual a universal e diferente de universal ao mesmo tempo? Por outro lado, parece que há um desespero hoje em dia, uma necessidade de que nossa criação seja algo único, inédito, singular. Há uma espécie de “corrida pela micropoética”, como bem definiu uma aluna em aula (Anna Júlia foi tu?).

Noto que mesmo dentro de um grupo, onde existe uma “ideologia já consolidada”
(que horror, não é bem isso o que eu quis dizer! Me perdoem Stravagantes) a luta estética é diária. Parece a arte de conciliar opostos, mas que ao mesmo tempo se fusionam de modo sempre peculiar, levando ao novo, ao inesperado que tanto buscamos, a ampliação de nossa experiência estética. A micropoética não é um objetivo (pelo amor de Deus, não pode sê-lo!), mas a consequência de um desespero (?) real e em algum nível compartilhado pelo grupo? Sim, há micropoéticas bem individuais, assim como há vidas bem individuais. Não acho que isso me interesse (na vida), ainda que me delicie com Wilson, Kantor, Fabre, Lawers, Castellucci, etc. O que me interessa no “fazer teatral” não é a arte em si, como conceito, mas interagir com as pessoas que estão por trás da arte que fazem. E depois sim tentar compreendê-la. Será que, no fundo, somos o conteúdo da própria forma que criamos?
“Diz-me o teatro que fazes e eu te direi quem és”?
Medo.

Martha Graham escreveu certa vez para Agnes DeMille (apud Anne Bogart. A Preparação do diretor, p. 91):
"Existe uma vitalidade, uma força vital, uma aceleração que se traduz em ação através de você, e como só existe uma você em todos os tempos, essa expressão é única. E se você bloqueia isso, ela nunca existirá através de nenhum outro meio e se perderá. O mundo não a terá."

Acho que se trata disso, de mergulhar de olhos fechados nessa força vital, nessa energia que se transforma em ação de modo único em cada artista, e só naquele artista. Parece-me decisivo pensar que se esse artista, pelo motivo que for, bloquear parte dessa energia, sua ação se perderá e nós nunca a teremos. O artista se perderá, e nós nunca o teremos. Por isso, não podemos ter medo de expressar. Pouco importa se é bom ou ruim, sempre será bom ou ruim para alguém.

E Graham segue:
“Não cabe a você determinar se é boa; nem se é valiosa; nem se comparar a outras expressões. Cabe a você manter essa expressão clara e direta, manter aberto o canal. Você não tem de acreditar em si mesma nem no seu trabalho. Tem de se manter aberta e diretamente consciente dos impulsos que a motivam”.

Parece então que a primeira coisa que precisamos fazer é tentar não nos tornarmos um empecilho para nós mesmos, nem para aqueles com quem trabalhamos (ainda que gerar um certo desequilíbrio provocador me pareça necessário!). Não há resoluções para a arte, nada está definido a priori. É sempre uma questão particular, e sempre será reveladora para alguém. Às vezes acho que todos os nossos medos vêm de nossa arrogância profunda, disfarçada de insegurança. Somos inseguros porque somos arrogantes (e somos arrogantes porque somos inseguros). Penso em um jovem dramaturgo, por exemplo, que acaba de escrever um texto. Ele não sabe se seu texto é bom ou ruim. Ele fica inseguro. Certamente seu texto será bom. Certamente seu texto será ruim. Mas isso não lhe basta porque, no fundo, ele guarda um desejo remoto (arrogante?) de unanimidade (sempre burra, já disseram), de querer ser um Shakespeare, um Beckett ou um Koltès. Provavelmente ele não o seja (a genialidade é sempre a exceção), mas talvez ele seja muito bom, talvez ele seja necessário para alguém, e por medo perdemos um dramaturgo, e por medo perdemos a possibilidade de uma nova expressão singular na arte. Não importa ser bom ou ruim, e sim SER.

O que você está fazendo? “ – Estou sendo.” (Clarice Lispector)

Bogart diz que quando a insegurança aparece, é importante buscar o impulso inicial, lembrar por que estamos ali, sem questionar, sem duvidar, sem teorizar. “A análise, a reflexão e a crítica devem ser feitas antes ou depois do ato criativo, nunca durante.” (Bogart, op cit, p. 56)
Acho que ser um Grupo é estar ali para o outro, com o outro e pelo outro, nos momentos criativos e nos momentos de bloqueio, nas teorizações, nas alucinações e nos pânicos. Juntos e individualmente, lá, onde dois mais dois não são quatro. Sinto segurança porque estou com vocês, sinto pânico porque estou com vocês, sinto que as coisas podem acontecer porque estamos juntos. Como diz nosso Apresentador, logo no início da peça:

Sim nós estamos juntos agora... e nada poderá fazer que seja diferente.
(...)
Porque vocês e eu, eu vou lhes dizer, senhoras e senhores, vocês e eu, nós estamos juntos na verdade desde sempre. Sim nós estamos juntos para sempre desde sempre, sem ter escolhido.
Sim, porque é assim...

(23/01/12)”

Da próxima vez, prometo ser mais breve (e quem sabe menos brega).
Camila (em homenagem interna)

4 comentários:

  1. Não seria o contrário: nossa arrogância como uma compensação por nossos medos profundos? Claro que quanto mais compensamos, mais viramos balões inflados... e por isso mesmo frágeis, e por isso mesmo mais inseguros e amedrontados.

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  2. Sobre grupos... Uma estrutura muito grande se aproxima mais da massa como definida por Le Bon e Freud - este último tinha como modelos principais de massas artificiais o exército e a Igreja. Um grupo é uma estrutura bastante menor e mais interativa entre seus membros e, nesse sentido, há um limite mesmo "neurológico" para seres humanos formarem grupos, algo em torno de 100 pessoas, já no limite. É muito mais fácil um grupo em torno de 10 a 50 pessoas, ressalvadas atividades em que apenas alguns realmente trabalham "em grupo" e outros trabalham essencialmente de modo individual, com contato, eventualmente, com alguns de um ou alguns grupos maiores. Talvez o Cirque du Soleil fosse um grupo (como um pelotão) inicialmente (com uns 70 "artistas" - aspas porque é como são caracterizados na wiki) mas hoje certamente é uma massa no sentido de Freud - alegoricamente, um "exército", com uns 3.500 "empregados" (aspas porque é como são caracterizados pela wiki).

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    1. Gosto da ideia de me dirigir, por meio do teatro, a cada pessoa em particular, a cada espectador específico, de tratar cada um como um ser único que é, e de desencadear processos singulares, percepções únicas em cada um deles. Espectador e não público. Acho a ideia de massa no teatro meio assustadora, ainda que reverencie as imensas produções dos grandes coletivos...
      ps: adorei as aspas... rsrs

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